Dicionário para redefinir a cidade

Um alfabeto político para lutarmos coletivamente pela habitação digna para toda a gente. Para não acharmos natural o que é habitual.

Descarregue os cartazes aqui.



B

BULLYING IMOBILIÁRIO

É a prática de senhorixs que querem expulsar xs inquilinxs que ainda têm contratos de arrendamento em vigor e que por isso estão protegidos por lei. Esta expulsão deve-se geralmente a um aumento da pressão financeira do mercado para que vendam os imóveis ou para que aumentem as rendas. Processos como a gentrificação (valorização imobiliária de dada zona urbana) têm como consequência o aumento massivo do bullying imobiliário.

As práticas do bullying são diversas e sofisticadamente macabras: podem consistir em cortes de água, luz ou do próprio acesso à habitação; recusa em fazer obras ou, pelo contrário, realização de obras num apartamento adjacente ou no prédio inteiro; e estratégias ainda mais violentas como ameaças verbais, agressão física, fogo posto, intimidação por parte de capangas ou até mesmo por parte de animais selvagens, como cobras ou ratos (a crueldade da imaginação não tem limites!). O bullying imobiliário foi criminalizado pela Lei nº 12/2019, mas continua a acontecer por todo o lado.

Consideramos que o assédio por parte de senhorixs a pessoas que ocupam casas é também uma forma de bullying imobiliário, muito embora não reconhecido pela lei. Um governo ou uma autarquia que despejam inquilinxs que estão a ocupar um habitação pública devoluta estão a incorrer em práticas de assédio ou bullying imobiliário!


C

CONTROLO DAS RENDAS

O controlo das rendas é uma estratégia institucional que permite regulamentar o mercado livre da habitação privada que no neoliberalismo tende a adquirir expressões cada vez mais desadequadas das realidades sociais, económicas e humanas das populações. Face à insustentabilidade dos preços das rendas, à massificação dos despejos por senhorios que visam o lucro e à expulsão de populações inteiras dos seus bairros para a periferia ou mesmo para a rua, o controlo das rendas é apenas uma medida lógica ao dispor dos Estados Sociais.

Esta medida, na sua expressão mais radical, implica a implementação de um tecto máximo das rendas, ou seja, de um valor máximo que xs senhorixs podem pedir axs arrendatárixs. No entanto, o controlo das rendas pode referir-se também às medidas de regulamentação do aumento percentual das rendas para um mesmo contrato. Face à crise habitacional que se prolonga há anos e que aflige sobretudo as grandes cidades e as regiões turísticas onde o investimento financeiro é potencialmente maior, consideramos que o controlo das rendas sob a forma de um tecto máximo é uma medida útil e necessária para estancar a ganância dxs senhorixs, dxs especuladorxs e dxs investidorxs.


D

DESPEJO

O despejo é um processo legal que consiste na expulsão de umx inquilinx por umx senhorix e que pode ser accionado por um agente de execução ou umx notárix em colaboração com as forças de autoridade. O despejo pode ter várias razões: não-pagamento da renda, maus tratos da propriedade, falta de residência permanente dx arrendatárix, não-renovação do contrato, etc.. Apesar de a Lei de Bases de Habitação (2019) declarar que um despejo não pode ser efectivado sem uma alternativa de habitação sabemos que não é isso que acontece na prática. Pessoas que perderem o seu emprego ou cujas pensões foram cortadas pelo governo são postas na rua, muitas vezes com recurso a violência dos senhorios (bullying imobiliário) ou da polícia.

A maioria dos despejos não acontece por danificação da propriedade, mas por ganância dxs senhorixs face à possibilidade de aumentarem as rendas, o que é fruto de processos mais abrangentes como a especulação imobiliária, a gentrificação ou a turistificação. De facto, o direito à propriedade privada sobrepõe-se sistematicamente ao direito à habitação, muito embora este último esteja consagrado pela constituição portuguesa.

Exigimos o fim dos despejos sem justa causa e sem uma alternativa de habitação digna que garanta a permanência nos bairros!


DIREITO À CIDADE

É o direito colectivo de uma comunidade de exercer o poder sobre o espaço urbano. Este “direito”, segundo o conceito original de Henri Lefebvre, não implica apenas uma forma de “direito cívico”, ou seja, o exercer dos direitos legislados pelos poderes dominantes. Pelo contrário, a sua lógica radical é indissociável de uma escalada do conflito social em que a comunidade reivindica a sua capacidade de transformar o espaço colectivo sem mediações institucionais. O direito à cidade pretende, pois, manifestar-se contra a progressiva mercantilização do espaço público, contra a própria política tornada uma mercadoria e um jogo económico e contra o desenraizamento das populações dos seus territórios e da vida comunitária.

Conceitos derivados como o “direito ao lugar” pretendem reivindicar o direito das populações a permanecerem nas suas casas e nos bairros onde cresceram ou onde estabeleceram laços, continuando assim a integrar as comunidades com as quais mantêm relações de afecto e proximidade.

Nas sociedades capitalistas e neoliberais não existe tal direito: o espaço público (ou seja, o espaço propriamente político da polis ou cidade, onde o encontro, a convivência e a discussão tomavam lugar) encolhe cada vez mais, fruto das estratégias de privatização e do lucro; a partilha comunitária é reduzida à prática do consumo que se desenrola nos espaços tendencialmente monopolistas como cadeias de cafés, restaurantes, bares ou hotéis; os espaços associativos desaparecem, sem capacidade de pagarem as rendas elevadas e, como tal, enfraquece-se toda a prática da solidariedade e do enraizamento (quem pode ainda dizer que conhece xs próprixs vizinhxs?); e toda a população é desarticulada e segregada pelas sistemáticas expulsões produzidas pelos despejos, pelas desocupações, pela especulação imobiliária, pela turistificação, pela gentrificação. A cidade torna-se numa Disneylândia para turistas, celebridades e grandes investidorxs e mesmo os pequenos negócios são substituídos pelos monopólios das Padarias Portuguesas e afins. A experiência da alienação moderna consiste em cada vez conhecermos menos aquelxs que nos rodeiam, para que cada vez saibamos menos como resistir.


E

ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA

É o acto de investir em bens imóveis de forma a valorizar os preços sem que haja investimento real nos edifícios. Por exemplo, comprar uma casa e mantê-la vazia, esperando que a sua localização seja valorizada pelo mercado, para depois vendê-la a preços muitos superiores ao valor de compra.

A especulação mantém zonas inteiras da cidade sub-utilizadas e leva ao aumento das rendas, destruindo o tecido social dos bairros. Zonas históricas com rendas baixas são especialmente apetecíveis a estas práticas, sobretudo quando processos de turistificação e gentrificação estão em curso. Em Marvila o prédio Santos Lima, habitado por 17 famílias, foi comprado pela empresa North Atlantic Trading Company por 2 milhões de euros e 1 mês depois foi vendido por 7 milhões às empresas Buy2Sale e Preciousgravity Lda. As famílias receberam ordens de despejo e sofreram bullying imobiliário dos novos compradores, mas resistiram e, unidas, ficaram nas suas casas.


G

GENTRIFICAÇÃO

É o processo de valorização imobiliária de uma zona urbana que tem como consequência a expulsão de uma camada economicamente mais vulnerável da população que é assim substituída por outra com maior poder económico e que pode corresponder à subida dos preços. Este processo não é apenas um processo económico ou de mercado, mas um processo de higienização social em que zonas inteiras da cidade são subitamente transfiguradas pela substituição de populações inteiras.

A gentrificação é muitas vezes acompanhada de outros processos como o city branding (as políticas que tornam as cidades em verdadeiras marcas, tentando atrair o investimento estrangeiro, o turismo ou a vinda de celebridades), a turistificação (que representa a cedência ao turismo em massa, sem qualquer regulamentação), a especulação imobiliária (investimento em bens imóveis de forma a aumentar o seu valor sem produzir nenhuma melhoria real), a privatização ou mercantilização do espaço público (fechamento de espaços de encontro livre, como praças ou jardins, que são muitas vezes concessionados a privados e se tornam assim lugares de consumo obrigatório e classista; a progressiva diminuição do espaço de trânsito e encontro sem a mediação do consumo, fruto do crescimento dos espaços comerciais, dos espaços de esplanada ou quiosques e da construção desenfreada para fins privados) e, claro, os despejos em massa (pois xs senhorixs, conscientes da valorização das suas propriedades, querem a oportunidade de trocar de inquilinxs para assim poderem subir as rendas).


H

HABITAÇÃO PÚBLICA

Habitação pública é uma tipologia de arrendamento habitacional em que o proprietário é uma autoridade governamental, seja ela central ou municipal. Integra-se numa categoria maior que é a habitação social em que o proprietário pode ser o estado, uma autarquia ou uma organização sem fins lucrativos. O objectivo principal da habitação pública é assegurar que as instituições governamentais garantem o direito à habitação das suas populações, combatendo assim a desigualdade social criada pelos sistemas capitalistas. Governos mais neoliberais tendem a reduzir a percentagem de habitação pública, impulsionados por uma lógica de lucro cego que não tem em conta as vulnerabilidades sociais e económicas.

Portugal é um dos países da Europa com a taxa mais baixa de habitação pública: cerca de 2%. Apenas para dar alguns exemplos contrastantes referimos que a Áustria tem 25% e a Dinamarca e a França cerca de 20%. Infelizmente a habitação pública é muitas vezes usada como medida paliativa, não lhe sendo dada a devida importância social, o que se reflecte tanto na qualidade das construções, como no mau-funcionamento dos processos burocráticos e critérios de selecção, como no plano segregador de isolar determinadas populações em guetos.

Numa sociedade que não tivesse a propriedade (pública ou privada) como eixo legislativo fundamental, haveria outras formas de habitar uma casa que não passassem pelo arrendamento ou pela compra. Mas na sociedade em que vivemos, a habitação pública é a melhor forma de contrariar a lógica selvagem do mercado livre e das medidas neoliberais que visam o lucro acima da dignidade humana.


O

OCUPAÇÕES

É a prática de entrar numa casa ou numa propriedade que se encontram vazias ou deixadas ao abandono pelxs proprietárixs e que assim passam a ser habitadas. As pessoas que ocupam não têm possibilidades de pagar uma renda a preço de mercado e decidem ocupar somente como último recurso. Em todo o país há centenas de pessoas que ocupam casas, muitas delas mães solteiras com várixs filhxs. Muitas destas casas são propriedade pública das autarquias às quais não é dada nenhuma utilização ou propriedades privadas deixadas ao esquecimento ou entregues à especulação imobiliária. Há também ocupações de cariz solidário que têm como objectivo criar cantinas sociais, centros de apoio a populações mais vulneráveis ou espaços associativos de encontro, produção artística e discussão pública.

Sob esta modalidade da ocupação é possível falar muitas vezes em práticas da horizontalidade e auto-gestão, de solidariedade e inclusão social. Fora da lógica da propriedade e do individualismo que ela outorga, as comunidades que ocupam podem agora organizar-se autonomamente e tomar as suas próprias decisões sem o constrangimento do dinheiro, de um título de propriedade ou da submissão a umx senhorix. Precisamente por interferir com o direito à propriedade que virtualmente anula o direito à habitação, a ocupação é um acto criminalizado e violentamente reprimido pelas forças de autoridade.

Mas nós dizemos: “Quando Habitar É Um Luxo, Ocupar É Um Direito!”